sexta-feira, janeiro 10, 2014

A MORTE, CRÔNICA PARA SER LIDA


            Sempre tive a morte como uma horrenda caveira vestida em um capote, de foice afiada em punho e com a cara e olhar cadavéricos. Era essa a visão de morte da minha infância. Aprendi que a morte como a entendia, geralmente, rondava as pessoas enfermas, sobretudo, as terminais. Lembro bem da minha avó paterna, lá pelos fins da década de cinqüenta e início da de sessenta, em seu leito de morte: esquelética, magérrima, a mastigar um naco de carne assada na brasa, agonizante, estando ali rondando, sombria, às caladas, a morte para levar a sua vida, a sua alma e rodeada por pessoas agourentas, pensava eu. Com o passar do tempo não deixei de ter a morte com essa visão aterrorizante, teratológica, feia e impiedosa como a mais ímpia e cruel dos seres, se é que podemos personificar a morte de ser, mas a vida puxa a morte, que não sei se é o fim ou o começo de tudo. Tenho minhas dúvidas, minhas incertezas sobre a continuidade do elo de ligação no limiar da vida e da morte. Por outro lado, não sei também se a nossa passagem por esta vida, onde se nasce, se cresce, se constrói, se esforça, se trabalha, se sonha e se morre, fica simplesmente nisso e termina tudo com a frieza, a indiferença e a impiedade da morte. A resposta é difícil de se encontrar, é algo um tanto vago e misterioso. Até hoje, pelo que sei, ninguém voltou do túmulo para dizer como são as coisas no outro lado da vida, do além-túmulo.
           Ensina-nos sabiamente a Bíblia, que “viestes do pó e ao pó retornarás”. É uma verdade inconteste e assim, à medida que vamos atingindo uma idade mais avançada, a nossa régua da vida vai encurtando, diminuindo de tamanho, como na velha história, vamos chegando cada vez mais perto com o pé na cova, como diz o ditado popular. Perdemos os nossos ancestrais, nossos entes queridos, pessoas amigas se vão e tudo continua, pois outras vidas vão surgindo em muito mais intensidade do que as que se vão. É como num ciclo onde a roda gira e passa sempre pelo mesmo lugar e tudo começa de novo.
                              Pensar na morte me deixa inquieto, sôfrego, dolente, mas às vezes, por incrível que pareça, embora tenha como maior preciosidade a vida minha, no desespero, a gente pensa até em tirar a vida, coisa mais importante e sagrada que existe, mas acontece. Quando vejo alguém tirar a sua própria vida, fico triste, impressionado, mas não rotulo o pobre moribundo de covarde, hipócrita ou coisa e tal. Razões certamente essa pessoa teve. O que faltou, quem sabe, foi uma maior compreensão, um maior apoio por parte das outras pessoas a sua volta e, quando se sente só, desprotegido, desvalorizado, humilhado e massacrado, se não tiver forças suficientes para superar suas próprias tentações, suas próprias incertezas e incompreensões, pode atingir o apogeu do desespero e chegar a não mais valorizar a sua vida e chamar para si a morte, tirando de si mesmo o que mais de importante existe, que é a própria vida, a razão do existir. Não menosprezo quem assim age, apenas tenho pena, pois certamente foi mais uma pessoa sofredora e incompreendida que no desvario da vida chegou ao ponto máximo da loucura e achou na sua pequenez de visão de mundo que o melhor mesmo era dá um ponto final em sua vida e desaparecer de vez de um mundo cada vez mais dominado por pessoas insensíveis e cruéis; um mundo onde o ser humano não é mais visto com o sentimento de amor; onde não se respeita mais; onde não se valoriza quem realmente merece; onde persiste a inversão de valores e onde o inocente paga pelo pecador. É neste mundo que certas pessoas que não têm o devido controle emocional, terminam por tirar a própria vida como heróico ato derradeiro.
                Não há como me acostumar, apesar da minha experiência de vida, com a idéia de aceitação da morte. Nem sei se àqueles que buscam um refúgio em alguma religião qualquer, também aceitem com facilidade, pois quando ela ronda moribundo enfermo, tenho visto muitos fraquejarem na hora agá. Assim não foi com a minha mãe, que faleceu sentada em sua cadeira de balanço, como quem agarrou num sono profundo, só que, dele ela não mais voltou, mas foi como se tivesse adormecido. Também ela já estava enferma há algum tempo e nos últimos momentos não tinha lá muita noção de que ainda existia. Talvez tenha sido melhor assim. Já com o meu pai foi diferente, ficou agonizante por exatos treze dias numa UTI hospitalar, como um vegetal. Só não entendi o porquê de eles terem sofrido tanto, principalmente porque em vida eles lutaram, trabalharam arduamente para nos criar. Minha mãe foi uma mulher digna. Católica praticante e sempre correta nos atos e nas ações. Dizem os religiosos que foram os desígneos de Deus. Não sei não, mas vá lá que seja. Mas que a morte é algo inaceitável e cruel, disto não tenho a menor dúvida. Aceitá-la, só mesmo forçado, na marra, pois se vida e vontade de viver em mim existirem, a morte é uma certeza da qual jamais poderei me afastar, mas quando ela chegar tudo farei para derrotá-la, embora infrutífera e desigual seja essa luta, ninguém dela  escapará e todos serão ceifados pela sua foice afiada e de golpe certeiro. Não se entregue com facilidade, pois a morte sempre estará rondando para lhe apanhar. O mote é: viver, viver e viver intensamente até que ela chegue, nos aprisione e nos domine de vez. Para a morte, temos que dizer: “vida que ti quero vida viva...”